Isto irá. Daqui a uma semana é 1º
de maio. Ser-te-á prestada homenagem, quando já estivermos mais
repostos. Os teus amigos farão outra coisa: festejarão o teu
aniversário.
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Miguel Portas |
Há quinze dias a crónica não saiu. Não
fui capaz de a escrever. Eu tinha sofrido uma grande perda e não quis
receber uma avalanche de mensagens. Recebi apenas algumas. Uma delas era
do Miguel Portas: “internado em Antuérpia”, dizia, desejava-me força
naquele momento difícil. Nestas duas semanas, enviei-lhe duas mensagens,
desejando-lhe força também, para os tratamentos. “Brigado”, respondeu
ele, “isto irá”.
Hoje a crónica sai, não sei se em condições para ser lida, peço
desculpa por isso. É 25 de abril, e o Miguel Portas morreu ontem. É
duro. Daqui a uma semana será 1º de maio. O dia de anos do Miguel
Portas, data que o enchia de vaidade. Isto é mais do que duro. É cruel.
Foi cruel morrer assim o Miguel Portas, tão dolorosamente. Mas ele
não se zangou com a vida. Logo o Miguel, que tantas vezes na vida se
zangou sem razão, não se zangou com a vida, mesmo quando teve toda a
razão para isso. Mas ele só podia gostar muito da vida. Tanto que nunca
acreditou que ela lhe pudesse fazer esta desfeita. Há mesmo pessoas em
que o gostar muito da vida está na raiz de tudo.
Isto irá, Miguel. Hoje é 25 de abril. É
dia de descer a Avenida da Liberdade. Vão lá muitos amigos, de cravo na
mão, camaradas teus, namoradas tuas, gente com quem te zangaste, gente
com quem te reconciliaste, gente com quem fizeste política, e
jornalismo, e amizade, e com quem desfizeste também. Para qual das
coisas tinhas mais talento? Também isso discutiremos ao descer a Avenida
da Liberdade, mesmo os que não puderem descer a Avenida; lembraremos os
jornais, e a política, e as amizades.
Isto irá. Daqui a uma semana é 1º de maio. Ser-te-á prestada
homenagem, quando já estivermos mais repostos. Os teus amigos farão
outra coisa: festejarão o teu aniversário. Mesmo aqueles que andaram à
bulha contigo. Todos sentem a tua falta. Até de andar à bulha contigo.
Falarão das coisas que fizeste, lembrarão como entraste na vida deles, e
não esquecerão nada, das coisas mais importantes àquelas que não têm
importância nenhuma. Como lhes arranjaste um emprego. Como o jornal foi à
falência. Como fizeste um partido novo.
E, sabes, Miguel? Isto irá. Aprenderemos finalmente, talvez não seja
já para amanhã, mas aprenderemos. A fazer as coisas de outra maneira. A
ser camaradas. A respeitar as diferenças. A juntar forças, mesmo. Tu,
que nunca foste sectário, vais gostar de ver. Mas como eras taticista,
vais ficar surpreendido.
Isto irá, finalmente. Faremos deste um país melhor. Teremos de ser
muito melhores para o conseguir fazer, é claro. Mas isto irá. As coisas
estão difíceis agora. Mas um dia vamos reconstruir o que agora está
sendo destruído. Nascerão as novas escolas, e teatros, e serão
reconstruídos os prédios velhos.
E haverá mais. Haverá viagens, Miguel, em que se arrancará logo de
madrugada. E piadas contadas em várias línguas, francês desenrascado,
italiano macarrónico, inglês acabado de aprender, uma ou duas palavras
em árabe. Isto irá. Hão de cair mais uns tantos muros, vais ver. E vai
haver jogos de futebol contigo como guarda-redes. E vão aparecer uns
jornais e umas revistas novas, com um pessoal novo, talentoso, que
havemos de descobrir. Vamos ter umas boas ideias. E, tal como garantiste
tanta vez, vamos dar a volta a isto. Vamos dar a volta a tudo. Nem
sempre acreditei, é certo. Mas isto irá.