‘Veja-se, aliás, esta eloquente história da queixa-crime apresentada pela Associação Sindical de Juízes contra todos e cada um dos membros do governo Sócrates que se atreveram a reduzir-lhes os salários e a tentar reduzir-lhes as férias.
Depois de, com a ajuda dos seus colegas dos tribunais administrativos, terem obtido acesso a todos os documentos relativos a despesas e uso de cartões de crédito e telefones dos membros do governo (aquilo a que o “Correio da Manhã” entusiasticamente chama “o saco azul do governo Sócrates”), a Associação pegou nos papéis e deduziu uma queixa-crime contra todos por suspeitas de utilização de dinheiros públicos para fins privados.
O Ministério Público, por seu lado, recebeu a queixa e já anunciou a inevitável Maria José Morgado para investigar os crimes. Ora isto, meus caros amigos, é sim uma abusiva utilização de poderes judiciais para fins de vingança corporativa e nada mais do que isso.
A drª Morgado, ao receber a queixa, deveria ter feito aquilo que faria tratando-se de uma queixa de um cidadão comum: dizer aos senhores juízes que ela não estava em condições de ser recebida. E porquê? Porque não se pode pegar num monte de documentos de despesas de gabinete, com cobertura legal, e suspeitar, em abstracto, que todos os membros do governo que tinham direito a essas despesas as utilizaram indevidamente. Como os senhores juízes muito bem sabem, não há crimes colectivos de governo, a menos que os queiram acusar de associação de malfeitores: os senhores teriam de dizer na sua queixa quem era suspeito de que crime, como, quando e porquê, e quais os documentos concretos e identificados que sustentavam as suspeitas.
De outro modo, se qualquer membro de um governo pode ser genericamente suspeito de utilização indevida de dinheiros públicos só porque tem ao dispor um cartão de crédito e um telefone, qualquer dia não há quem se atreva a governar.
E imaginem que os membros do governo Sócrates se lembravam de retaliar, pedindo aos tribunais administrativos que lhes concedessem acesso a todos os documentos de despesa dos juízes portugueses? Os tribunais administrativos concedê-lo-iam? E, se, por absurdo, o fizessem e os juízes fossem obrigados a mostrar todos os documentos de despesas pessoais dos últimos anos, a drª Morgado receberia uma queixa-crime genérica contra todos os juízes, com base numa montanha de papéis por analisar? Imaginem...’
- Miguel Sousa Tavares (Expresso)