"Ricardo Santos Pinto, do blogue “Aventar”, prestou-nos um serviço cívico: recolheu em vídeo (ver) afirmações
e promessas de Pedro Passos Coelho, enquanto candidato a
primeiro-ministro. O cotejo desse impressivo documento com as medidas
tomadas pelo visado, nos curtos quatro meses de poder, evidencia o
colossal logro em que os portugueses caíram. Se em quatro meses a sua
acção é pautada por tanto despudor e falta de ética, que sobra à nação
para lhe confiar quatro anos de governo?
O orçamento do
Estado para 2012 é bem mais bruto que o tratamento “à bruta” que Passos
Coelho recriminou a Sócrates, no vídeo em análise. Aí se consagra, com
uma violência desumana, o que Passos Coelho disse que nunca faria:
confisco de quatro meses de salários aos servidores públicos e
reformados; fim de deduções fiscais; aumento de impostos,
designadamente do IRS e IVA. Ao embuste ardilosamente tecido em ano e
meio de caça ao voto acrescenta-se a falácia com que se justifica o
assalto aos que trabalham. Com efeito, muito mais que a invocada má
gestão das contas públicas no primeiro semestre, da responsabilidade de
Sócrates, pesa a irresponsabilidade da Madeira e o caso de polícia do
BPN. Na primeira circunstância, ocultando manhosamente o plano de
ajustamento, antes das eleições, Passos Coelho protegeu Jardim e
escamoteou quem saldaria o escândalo. Sabemos agora que são os
funcionários públicos e os pensionistas. Na segunda, enquanto os
responsáveis pelo tenebroso roubo permanecem impunes, os contabilistas
que governam venderam o BPN ao desbarato, limpinho das dívidas
colossais. O povo vai pagar e pedem-lhe agora que não bufe, por causa
dos mercados.
Passos Coelho manipula grosseiramente os
factos quando afirma que a média salarial da função pública é 15 por
cento superior à dos trabalhadores privados. Ele sabe que a
qualificação média dos activos privados é bem mais baixa que a homóloga
pública, onde trabalham, entre outros técnicos de formação superior,
milhares de médicos, professores, juízes, arquitectos, engenheiros e
cientistas. Para que a comparação tenha validade, há que fazê-la entre
funções com idênticos requisitos académicos. A demagogia não colhe.
Como não colhe o primarismo de dizer que não estendeu o corte dos
subsídios aos privados porque o Estado não beneficiaria, mas sim os
patrões, que pagam os salários. Esqueceu-se de como fez com o corte
deste ano? Ou toma-nos por estúpidos?
O orçamento
esconde-se cobardemente atrás da troika para invocar a inevitabilidade
das suas malfeitorias. Mas vai muito para além do que ela impõe e expõe
a desvergonha da ideologia que o informa: quando revê a Constituição
da República por via contabilística; quando poupa, sem escrúpulos, os
rendimentos do capital e esquece os titulares das reformas por exercício
de cargos públicos, numa ostensiva iniquidade social; quando permite
que permaneçam incólumes os milhões que fogem ao fisco; quando
compromete, sem réstia de tacto político, a solidariedade entre os
cidadãos, pondo os que trabalham no sector privado contra os que
trabalham no sector público; quando, atirando o investimento na Educação
para o último lugar da União Europeia, ao nível dos indicadores do
terceiro mundo, não só não desce o financiamento do ensino privado como o
aumenta em nove milhões e 465 mil euros; quando, depois de apertar
como nunca o garrote à administração pública, aumenta quase quatro
milhões de euros à rubrica por onde pagará pareceres e estudos aos
grandes gabinetes de advogados e outros protegidos do regime (Sócrates
contentava-se com 97 milhões, Passos subiu para 100,7 milhões); quando,
impondo contenção impiedosa nas áreas sociais, inscreve 13 milhões e
meio para despesas de representação dos titulares políticos; quando,
numa palavra e apesar do slogan do “Estado gordo”, apenas emagreceu
salários e prestações sociais, borrifando-se nas pessoas e no país e
substituindo o critério do bem comum pelo critério do bem de alguns.
Incapaz
de ajudar o país a crescer, Passos tomou a China por modelo e
acreditou que sairemos da fossa com uma economia repressiva e de
salários miseráveis. Refém que está e servidor que é de grupos
económicos e interesses particulares, Passos Coelho perdeu com este
orçamento a oportunidade de resgatar o Estado. Ministério a ministério,
não se divisa qualquer programa político redentor. Não existem
políticas sectoriais. Se Passos regressasse à protecção de Ângelo
Correia, Álvaro a Vancouver e Crato ao Tagus Park, Gaspar, só, geria a
trapalhada que tem sido tecida de fininho. Recordemo-la. Em Maio
passado, o memorando de entendimento que o PS, PSD e CDS assinaram com a
troika consignava para 2012 cerca 4.500 milhões de euros de redução da
despesa e cerca 1.500 de aumento da receita (leia-se impostos). Apenas
três meses volvidos, o documento de estratégia orçamental do Governo
para o período de 2011 a 2015 já aumentava os números de 2012: a
redução da despesa pública crescia quase 600 milhões e as receitas a
cobrar aumentavam quase 1.200, pouco faltando para a duplicação do
número antes considerado. Foi obra, em três meses. A meio de Outubro,
novo documento oficial reiterava os números anteriores. Mas eis senão
quando, escassos dias volvidos, surge o orçamento, que passa a redução
da despesa, em 2012, para quase 7.500 milhões e fixa o aumento de
impostos em cerca de 2.900 milhões. Diferenças colossais em documentos
oficiais, com quatro dias de premeio, merecem a confiança dos
contribuintes? Com a classe média a caminho da pobreza e os pobres a
ficarem miseráveis, a esperança morreu. Definitivamente. Bastaram
quatro meses. Esperemos que o país acorde e se mobilize."
* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)
Co-autor do Programa Eleitoral do PSD para as Legislativas de 5 Junho 2011
in: Público