Ao contrário do que pensam algumas pessoas, a democracia não é a ditadura da maioria.
Ela exige regras. Para que o voto não se transforme num mero
plebiscito, para que as minorias sejam respeitadas nos seus direitos,
para que continue a vigorar a lei que vive acima dos poderes de cada
momento. Uma democracia só o é se estiver garantida a separação de
poderes, se existir uma imprensa livre, se existir na sociedade um grau
de autonomia mínimo que permita que ela não seja refém dos detentores
circunstanciais do poder político, se à oposição forem dados
instrumentos para o ser e se aos eleitores forem dadas as condições para
decidir em liberdade.
Olhando para a Madeira com atenção é difícil dizer que ali existe realmente uma democracia.
As pessoas votam e existe pluripartidarismo, é verdade. Não se poderá
dizer que é uma ditadura, até porque, sendo uma região integrada num
país democrático, dificilmente poderia ali sobreviver um regime
autoritário. Mas, para ser uma democracia, faltam-lhe demasiadas coisas.
Antes de mais, a sociedade madeirense está refém de uma pessoa e do seu circulo de poder.
Os principais empresários locais e os dirigentes regionais das principais empresas nacionais, com destaque para os bancos, são pessoas com fortes relações com o circulo de influências do presidente regional
e, para ali fazerem negócios, precisam de ter a sua simpatia. As
empresas que não ajudem o regime são economicamente sabotadas. As que
deem uma ajuda são financiadas de forma indireta e muitas vezes ilegal.
Para subir na carreira o cartão de militante do PSD é quase uma condição
curricular. Esta é a rede de dependências que o jardinismo construiu no topo da sociedade madeirense.
Na base, a grande maioria dos madeirenses trabalha para o Estado.
Com raras exceções, os principais empresários - empregadores do sector
privado - são muito próximos do regime, quando não fazem mesmo parte
dele. Quem dê nas vistas no combate ao partido-Estado ou se atreva a
concorrer em listas da oposição é bom que tenha a sua situação
profissional bem defendida ou o mais provável é vir a conhecer o
desemprego.
Apesar dos rios de dinheiro que recebeu, a Madeira tem dos mais baixos índices de escolarização no País.
É a segunda região portuguesa com mais analfabetos, só sendo
ultrapassada pelo envelhecido Alentejo. Enquanto no Continente 9% da
população é analfabeta - nos Açores é 9,4% -, na Madeira são 12,7%. Tem a
maior percentagem de cidadãos que se ficou pelo primeiro ciclo. Em
2002, cerca de quarenta por cento da população não tinha a escolaridade
obrigatória. Isto diz muito sobre o tipo de desenvolvimento em que
Jardim apostou.
Numa região fortemente marcada pela religião, a Igreja Católica é cúmplice ativa do regime,
numa relação promíscua que não encontra paralelo no resto do País. O
Governo Regional paga-lhe as contas e dá-lhe as ordens. O clero faz
campanha ativa e sem qualquer pudor pelas "setinhas viradas para céu". E
um padre que se atreva a pôr em causa o governante encontra ali enormes
dificuldades.
Na Madeira compram-se votos às claras. As
juntas de freguesia distribuem, nas campanhas eleitorais, madeiras,
tijolos, tintas e telhas. Quem se sabe não ser da situação vai para casa
de mãos a abanar. E tudo sem qualquer discrição. Não é preciso porque
nunca nada tem qualquer consequência.
Com uma pequena classe média dependente do regime e
uma população pouco escolarizada e cercada de jardinismo por todos os
lados não tem sido difícil, para o presidente do governo regional,
manter o circulo de poder bastante apertado.
Na Madeira não há qualquer separação de poderes nem
nenhuma lei parece conseguir limitar a ação de Jardim e dos seus homens
de mão. As perseguições aos opositores políticos são comuns. Num meio pequeno, o sistema judicial e de segurança vive paredes meias com o regime e garante a sua impunidade absoluta, deixando completamente desprotegidos os que não aceitem o poder absoluto de Alberto João Jardim.
Existe a imprensa e as televisões do continente, um
dos poucos sinais de pluralismo na ilha. Mas o jornal mais lido da
Madeira, que sempre foi o "Diário de Notícias" local, onde trabalham
jornalistas com uma enorme coragem e dedicação, vive com enormes
dificuldades. Como, apesar de tudo, ainda não é possível fechar as
portas de jornais, Jardim usou outra estratégia. Pegou no "Jornal da
Madeira", quase na totalidade detido pela diocese - na já referida
promiscuidade entre a Igreja e o Estado - e encheu-o de dinheiro. Entre 1993 e 2008 Governo Regional da Madeira terá dado à empresa detentora do "Jornal da Madeira" quase 35 milhões de euros.
O dobro do que gastou em publicidade institucional em todos jornais. E a
maioria desse, claro está, foi para mesmo diário. 83 por cento do
dinheiro despendido em imprensa foi para um jornal que ninguém quer
comprar.
Recentemente, um jornal quase sem leitores e numa
situação económica calamitosa - tecnicamente falido, com dezenas de
milhões de passivo e com resultados negativos superiores a três milhões
de euros anuais - aumentou a sua tiragem de 6.500 para 15 mil
exemplares, passou a ter como preço de capa dez cêntimos e, na
realidade, a ser distribuído gratuitamente por toda a ilha.
Tratando-se de um jornal privado, tudo foi pago com dinheiros públicos. A
concorrência desleal de um pasquim que faz a mais desbragada campanha
por Jardim - e que já foi diversas vezes notificado pela CNE e pela ERC,
continuando a recusar-se a cumprir a lei, incluindo a do direito de
resposta - está a colocar o DN da Madeira numa situação financeira muito
complicada. Ou seja, Jardim está quase a conseguir fechar o único órgão de comunicação social que não lhe obedece.
Com maioria absoluta há mais de três décadas, o parlamento regional é um órgão decorativo.
O seu regimento serve para calar a oposição. Ao mesmo tempo que os
titulares de cargos políticos não estão, ao contrário do que acontece no
restante território nacional, abrangidos por qualquer lei de incompatibilidades - mantendo empresas com negócios com o Estado que eles próprios dirigem -, é, com frequência, levantada a imunidade parlamentar a deputados da oposição
para que possam ser julgados pelas denúncias que fazem sobre estes e
outros casos. O desrespeito é tal que a maioria já impediu, através do
uso de forças de segurança, a entrada de um deputado no edifício da
Assembleia Legislativa, o Presidente foi impedido - e aceitou a
imposição - de visitar o verdadeiro órgão representativo dos madeirenses
- tendo recebido os deputados da oposição num hotel - e a maioria até
já suspendeu o funcionamento do parlamento regional por uns dias. A Constituição da República não vigora na Madeira. Nem a nossa nem outra qualquer.
Com os empresários, a classe média e o povo reféns
de Alberto João; com uma clique clientelar que domina quase toda a
economia da ilha; sem instituições de justiça e de segurança com o
mínimo de autonomia em relação poder político; e com a imprensa livre
ameaçada e a oposição sitiada, aquilo a que assistiremos no dia 9 de
Outubro é o mesmo a que assistimos nas últimas três décadas: a um
plebiscito a um governo antidemocrático e que vive à margem da lei.
Como foi isto possível? Porque Alberto João Jardim,
um simpatizante do Estado Novo repentinamente convertido às maravilhas
da liberdade depois do 25 de Abril, chegou ao poder quando a democracia ainda dava os primeiros passos no País.
Numa ilha pobre e isolada, contando com os recursos que a República
canalizou para os dois arquipélagos (e com os que resultam dos impostos
cobrados na Madeira e que ficam todos na ilha), instalou-se no poder e moldou o Estado à sua própria vontade.
Nos últimos trinta e três anos a República esteve-se
nas tintas. Esse sim, é o pecado centralista de Lisboa. A Madeira era
longe e ali não tinha de vigorar a legalidade democrática. Passados
tantos anos, a República já nada consegue fazer para que a normalidade
seja instaurada na ilha. Ou a oposição madeirense consegue romper a
muralha de ferro que Jardim construiu à sua volta, ou a crise económica
trata de apear Jardim, ou só as leis da natureza o tirarão de lá.
Nenhuma destas coisas acontecerá no próximo fim de semana. Jardim vencerá mais uma vez. O polvo dará mais uma "sova" à democracia.