Nas relações entre políticos (ou dirigentes desportivos, agentes culturais, empresários) e jornalistas, a fronteira entre a irritação, a indignação ou a crítica e a pressão é ténue.
Depende dos modos do político, da sensibilidade do jornalista e da
intimidade entre os dois. Não há regras escritas sobre a forma como se
gere a inevitável tensão que existirá sempre entre comunicação social e
política. Não gosto, por isso, da moda do jornalismo queixinhas e de
quando o jornalista se torna no centro das notícias. Há políticos que
pressionam jornalistas usando abusivamente o seu poder para limitar o
trabalho da imprensa. Assim como há, já agora, jornalistas que
pressionam políticos usando abusivamente o seu poder para conseguir uma
notícia.
Dito isto, há terrenos que estão claramente para lá da fronteira em que possam existir dúvidas. Do que se sabe, na
conversa entre Miguel Relvas e a jornalista do "Público", Maria José
Oliveira, o ministro foi muito para lá do que possa ser discutível. Ameaçar publicar coisas sobre a vida privada de uma jornalista ou prometer um blackout do governo a um jornal é chantagem pura e simples. É um atentado à liberdade de imprensa. Acresce que se sabe que Miguel Relvas é, na relação com a comunicação social, useiro e vezeiro neste tipo de comportamentos. Ainda nos lembramos do caso Pedro Rosa Mendes.
Sobre a decisão do jornal em não publicar a notícia que Maria José Oliveira terá escrito não me pronuncio.
Não li a notícia. E não basta que tenha havido uma pressão para que
uma notícia passe a ser publicável. A relação de um jornal com os
trabalhos jornalísticos não é igual à relação que tem com os trabalhos
de opinião. Cabe ao jornal decidir se uma notícia é relevante para ser
publicada. Acresce que o comunicado do Conselho de Redação do "Público"
parece-me pouco fundamentado. Nesta matéria, os leitores do jornal terão
de esperar por mais esclarecimentos, por exemplo, do Provedor do
Leitor.
Quanto à existência de um ato inaceitável de chantagem, as coisas não podiam ser mais claras. Relvas chantageou a jornalista.
Mesmo que esta lhe estivesse a fazer exigências ilegítimas - como
dar-lhe um prazo de 32 minutos para responder a uma pergunta -, há
coisas que um titular de um cargo público não tem o direito de dizer ou
fazer. E que, fazendo-o, significam uma violação da liberdade de
imprensa. Se elas são ditas ou feitas pelo titular da tutela da
comunicação social, pior um pouco.
José Sócrates ultrapassava muitas vezes esta fronteira.
Não me lembro - mas pode ser falha de memória minha - se alguma vez
terá chegado tão longe. Mas foi muitas vezes longe demais. E teve
direito à justa indignação (também a minha), tendo havido mesmo quem
defendesse que vivíamos num ambiente de "asfixia democrática". Por essa altura, um grupo de jovens (e menos jovens) bloguistas chegou mesmo a organizar uma concentração em frente ao Parlamento
em defesa da liberdade de imprensa, coisa nunca vista, nem nos tempos
do cavaquismo, aqueles em que a pressão aos jornalistas foi, em
democracia, mais sistemática.
É agora interessante observar o silêncio dessas
mesmas pessoas. Fui ver a lista de promotores dessa passeata dos tempos
socráticos. Deixei de fora os meros subscritores do apelo para a
manifestação e os blogues coletivos que a ela se associaram. Fiquei-me
pelos promotores individuais iniciais. À espera que gritassem
presente por uma imprensa livre. Entre os poucos promotores estavam
pessoas que o leitor pode não conhecer mas são relativamente populares
na blogosfera: Adolfo Mesquita Nunes, Carlos Nunes Lopes, Vasco Campilho e Rodrigo Moita de Deus, por exemplo.
Porquê o seu silêncio? Porque alguma coisa mudou na
vida do País e nas suas vidas. Adolfo Mesquita Nunes poderia ser
coerente e protestar também agora. Mas entretanto tornou-se deputado do CDS. Carlos Nunes Lopes podia ter vindo de novo em defesa da liberdade de imprensa, mas agora é chefe de gabinete do secretário de Estado dos Transportes. Vasco Campilho poderia ir para a frente de São Bento defender os jornalistas dos abusos de Relvas, mas agora trabalha no Ministério do Ambiente e é um dos coordenadores do Plano Operacional de Valorização do Território.
Rodrigo Moita de Deus, o mais ativo dos protestantes do passado, podia
ter organizado outra concentração contra a "asfixia democrática", mas
entretanto passou a ser membro do Conselho Nacional do partido de Miguel Relvas.
Se em relação a José Sócrates não lhe faltaram palavras, hoje escreve:
"Miguel Relvas lida com jornais e jornalistas há mais de uma década. Se
fosse pessoa para fazer o que acusam já todos teríamos dado por isso.
Nem teria sobrevivido até aqui." Ou seja, de indignados pela liberdade
de imprensa os jovens bloguistas passaram a obedientes e silenciosos
assessores, deputados e dirigentes partidários.
É por estas e por outras que escuto sempre com muita cautela discursos
difusos, que ignoram as condições de proletarização crescente em que
jornalistas trabalham, sobre a liberdade de imprensa e a sua relação com
o poder político (esquecem sempre o mais eficaz dos poderes, que é o
económico). Cansei-me de ouvir o silêncio presente dos indignados do
passado e a indignação presente dos silenciosos do passado. E,
sobretudo, tenho sempre muitas dúvidas sobre a coerência de quem defende
a precariedade profissional e editorial dos jornalistas e se quer
trasvestir, quando dá jeito, em advogado da sua liberdade.
Dito isto, o que Miguel Relvas fez com a jornalista
do "Público" é grave. Não por o caso em si, que poderia corresponder
apenas a um excesso do momento, mas por ser evidente que se trata de um padrão de comportamento. Assim como a cumplicidade com estes atropelos a uma imprensa livre é um padrão dos apoiantes do centrão que, à vez, passam de defensores dos jornalistas para disciplinadores dos jornalistas. Só depende de quem está no poder.