Afinal, eles bem sabiam o que vinha a caminho

"Os contornos multiformes do caso Relvas, a ter como protagonista um ministro socialista, dariam origem a um pandemónio. De imediato o Aníbal, a direita, a esquerda, os sindicatos, as ordens, a sociedade civil, os fogareiros, os clubes do tapperware, os grupos de escuteiros, e qualquer macaco capaz de juntar um adjectivo a um substantivo, saltariam alucinados de indignação para o espaço público. Basta recordar o que se disse e escreveu nos episódios dos corninhos infantilóides do Pinho ou no desvairo pateta e hilariante do Ricardo Rodrigues ao fanar os gravadores dos jornalistas em frente às câmaras. Estes dois casos, um deles levando à imediata demissão e seu prejuízo político, o outro ao custo político da continuação em funções, não têm qualquer comparação com o que já está estabelecido no tribunal das evidências a respeito de Relvas, pois a temática das secretas e da chantagem para cima de jornalistas é de um outro e inaudito campeonato. Assim, não havendo ninguém do PS para abater, reina o civismo, o sentido de Estado, o protocolo de esperar pelas averiguações e demais minudências. Temos até disponibilidade para apreciar o espectáculo imperdível de ver aqueles infelizes que aparecem a defender o indefensável, autênticos farrapos que teriam sido dos mais assanhados e furibundos caso o alvo não fosse laranja e sim cor-de-rosa.

Criar pânico na população, instigar ao clima de permanente histerismo foi instrumental e decisivo para o desgaste e abate de Sócrates. Correia de Campos, que entrou no Ministério da Saúde sabendo o que lhe iria acontecer inevitavelmente mais cedo ou mais tarde, caiu porque de repente até algumas figuras gradas do PS alimentavam a irracionalidade contra si e contra o Governo. Estes fenómenos tinham diferentes causas, desde a permanente desconfiança face ao poder até à dificuldade de aceitar mudanças de cultura, passando pela eficácia mediática na construção das percepções, imagens e sentidos. Mas à volta de Sócrates o histerismo igualmente nascia do seu carisma, da sua força que vencia e, por isso, que ia subindo a parada do desafio para os seus opositores. Tal destino humilhou a gente séria, impotente e corroída por uma endógena decadência intelectual. Não tinham generais nem guerreiros à altura, mas tinham veneno. Abundante, inesgotável veneno.

Centenas de milhares de desempregados atrás, no tempo em que seria impossível admitir que algum Governo se atreveria a cortar subsídios à má-fila, quanto mais defender a pobreza como meta ideológica, e os sinais de uma economia a modernizar-se iam aparecendo com consistência apesar das conjunturas de crise sucessivas, o dia-a-dia era preenchido com a legião de clones do Medina Carreira que garantia estarmos a caminhar para o abismo em passo de corrida, que estávamos a ser governados por incompetentes, criminosos e loucos. Honra lhes seja feita, finalmente acertaram em cheio."
 
in: aspirina b