"Não minto, não engano nem ludibrio os portugueses, afirmou
categoricamente o senhor ministro das Finanças, Vítor Gaspar, aos
deputados na Comissão de Orçamento e Finanças, quarta-feira, na
Assembleia da República. Palavra de ministro de que não quero duvidar,
mas a realidade entra-nos pelos olhos dentro e não deixa espaço para
duvidarmos que omite, ilude e dribla os portugueses.
Omitiu à Assembleia da República documentos do PEC travestido de DEO –
Documento de Estratégia Orçamental – que enviou para Bruxelas em segredo
e só depois de confrontado com este episódio pelos deputados da
oposição entregou ao presidente da Comissão de Orçamento e Finanças a
versão em inglês. Esta atitude viola princípios fundamentais e basilares
da democracia e do relacionamento entre o governo e o parlamento.
Ilude sistematicamente os portugueses com as suas projecções
macroeconómicas. Em menos de um ano (dez meses apenas), o ministro Vítor
Gaspar já elaborou e apresentou seis projecções diferentes para o
crescimento da economia: em Julho uma projecção de 1,7% de crescimento
negativo; passado um mês reviu em baixa esse valor, para -1,8%; dois
meses depois passou para uma recessão de 2,8% (-1 ponto percentual em
dois meses); cinco meses depois veio admitir um valor de -3,3%; e agora,
passado um mês, revê em alta para -3,0%.
Veremos se até ao fim do ano ficamos por aqui, porque já vimos que o
senhor ministro Vítor Gaspar não é especialista em projecções, sendo
comandado na sua acção pela obsessão pela austeridade.
Dribla os portugueses com a reposição dos subsídios de férias e de
Natal, afirmando que a mesma se verificará no fim do período de vigência
do Programa de Assistência Económica e Financeira, mas no famigerado
DEO/PEC, enviado a Bruxelas, inscreve na página 39: “No caso de
Portugal, só foram incluídas nas projecções das pensões as medidas
legisladas até Agosto 2011. Nas restantes despesas foi tido em conta o
corte salarial médio de 5%, em 2011, e o corte nos subsídios de férias e
Natal a partir de 2012.” Ora aqui está preto no branco a demonstração
de que a verdadeira intenção do governo é transformar em definitivo
aquilo que verbalmente afirma que é provisório.
Tenta ainda driblar a Assembleia da República, rebaptizando com o nome
de DEO o que é um verdadeiro PEC, como é evidenciado no primeiro
parágrafo do próprio documento, com o objectivo de evitar apresentar
este importante documento aos deputados, conforme prevê o Artigo 12.o B
da Lei de Enquadramento Orçamental, especialmente o seu n.o 5, que
obriga à sua apresentação à Assembleia da República antes de o enviar
para Bruxelas.
Como tudo é diferente passado um ano... É verdade que há um ano os
membros do governo, especialmente o primeiro-ministro, não mentiam,
porque carecia de demonstração o que fariam no futuro.
Hoje apelam ao sentido de responsabilidade do Partido Socialista para a
aplicação do Memorando da troika e de tudo o que está para além dele,
quando há um ano apenas tiveram um objectivo, derrubar o governo movidos
pela ganância do poder e pela ambição de aplicar a sua agenda
ultraliberal.
O governo do PS e o primeiro-ministro José Sócrates apresentaram em
Bruxelas e aos portugueses em simultâneo as linhas gerais daquilo que
haveria de ser o PEC IV. Nessa altura fez-se ouvir um coro de protestos
contra o comportamento do governo, a dizer que o tinha feito sem dar
prévio conhecimento ao parlamento e ao Presidente da República.
E a atitude era tão grave que até o Presidente da Republica classificou
o comportamento de José Sócrates no prefácio do livro “Intervenções
Roteiros VI” “uma falta de lealdade institucional que ficará registada
na história da nossa democracia”.
Agora, quando o governo PPD/PSD-CDS/PP apresenta o DEO/PEC, em
Bruxelas, no mais absoluto dos segredos, numa versão bem diferente da
que apresentou posteriormente na AR, tudo não passa de meros formalismos
e o senhor Presidente até desvaloriza o episódio remetendo a sua
justificação para as explicações do ministro das Finanças.
O que era uma deslealdade, uma verdade absoluta e grave ontem, não
passa hoje de mero formalismo, epifenómeno de criação de factos
políticos menores que devem ser desvalorizados. Há razões que a razão de
facto não consegue alcançar. Ou talvez consiga…"
Renato Sampaio
Deputado do PS pelo Porto
Jornal i