A realidade surreal do pré-escolar
Sou Educadora de Infância há 30 anos na
rede pública do Ministério da Educação. Iniciei o meu percurso
profissional nos anos dourados do pré-escolar em Portugal. Esse era o
tempo dos pequenos Jardins de Infância de aldeia, bem integrados nas
suas comunidades, interpelando-as culturalmente e em franco diálogo com
as famílias. Esse era o tempo em que a bandeira agitada defendia que
este tipo de estrutura se destinava a responder às necessidades
pedagógicas das crianças e não das famílias. Não havia almoços nem
prolongamentos de horário com nomes pomposos como “Actividades
socioeducativas”. As crianças não permaneciam no Jardim tempo demais,
eram serenas e viviam mais felizes.
Que longe estamos desses anos. Assistimos
nos últimos tempos à caça aos chamados Jardins de Infância isolados.
Qual será a razão? Com o argumento de centralizar e rentabilizar
recursos que, supostamente, melhorariam a qualidade do ensino, os
mega-agrupamentos escolares crescem como cogumelos, esvaziando as
aldeias de crianças, que agora se amontoam em Escolas com vários ciclos
de Ensino. O presente das Escolas Novas, com cores belas, bibliotecas,
pavilhões multiusos, etc… revelou-se no entanto um presente envenenado.
Em Educação, o formato mega não traz mais qualidade, e a massificação
acarretou, claramente, menos qualidade no ambiente escolar, no
atendimento pessoal e na actividade educativa.
Rentabilizar recursos significou desde
logo que deixasse de existir 1 (uma) Assistente Operacional (auxiliar de
educação) por cada grupo de Jardim. O rácio agora é de 1 (uma)
Assistente para cada 2 (duas) salas. O panorama real pode ser, por
exemplo, que, para uma Escola com 3 (três) salas de Jardim e 5 (cinco)
de 1.º ciclo, existam apenas 4 (quatro) Assistentes Operacionais. O
significado disto é o seguinte: uma Educadora que tem um grupo
heterogéneo de 25 crianças, com 2, 3, 4 e 5 anos, passa pelo menos duas
horas e meia por dia a braços com todo o grupo, sem qualquer apoio.
Oiço colegas jovens a fazerem-me relatos
desesperados. Conta-me a Vera que, durante os primeiros dias deste ano,
teve 30 crianças (por atraso na colocação de uma colega, uma turma havia
sido dividida pelas demais Educadoras). Entre choros de início de ano
lectivo, conflitos a gerir entre as crianças, crianças que faziam xixi e
precisavam de ser mudadas, com uma casa de banho fora do alcance visual
da Educadora e sem uma Assistente para lhe dar apoio a tempo inteiro…
imagine-se o caos! Não é de estranhar que, num desses momentos, uma
criança tenha escorregado e aberto o sobrolho numa ida ao WC. Quando a
Educadora chegou ao local constatou o facto e, além de ter que dar a
ajuda necessária a esta criança, e localizar a auxiliar que se
encontrava em parte incerta, ao chegar à sala já tinha outra criança a
precisar de ser mudada e mais 28 que precisavam da sua supervisão. Ao
fim do primeiro mês de trabalho desabafa: “Ainda não consegui começar a
trabalhar… Já me pergunto que sentido tem esta profissão neste
contexto”.
A Isabel e a Manuela relatam-me outras
situações caóticas nos seus pólos escolares decorrentes de rácios de 1
(um) adulto por 25 crianças na hora de almoço, havendo situações piores.
Se uma criança precisar de ir ao WC nesta hora, pode ter que percorrer
corredores fora do alcance da supervisão do adulto até ao WC mais
próximo. A alternativa será o adulto acompanhá-la e deixar sem
supervisão os outros 24! Lembremos que nos grupos de pré-escolar existem
crianças com apenas 2 anos!
Se falarmos das horas de recreio após
almoço, a situação ainda se agrava: é possível estarem 150 (cento e
cinquenta!) crianças de pré-escolar e 1.º ciclo, e até mais, no mesmo
espaço, durante hora e meia, sob a supervisão de apenas 2 (duas)
Assistentes Operacionais. É evidente que o objectivo inglório e
desesperado deste pessoal auxiliar acaba por ser evitar que alguém vá
parar ao hospital. Mas é impossível evitar “galos”, mazelas várias,
arranhões e nódoas negras sobre as quais os pais vêm pedir explicações
(em mau tom) às Educadoras, que nem sequer estavam presentes por se
encontrarem na sua hora de almoço.
Para piorar o panorama, o que qualquer
Educador com duas ou três dezenas de anos de serviço pode confirmar, é
que os grupos são cada vez mais caóticos. Agitação, desconcentração,
comportamentos disruptivos, desafio da autoridade do adulto,
brincadeiras violentas claramente influenciadas pelo consumo desregrado
de televisão, desenhos animados e jogos violentos, são a realidade quase
generalizada hoje em dia.
Para completar o cocktail explosivo,
surgiu a famosa ideia da Escola inclusiva, para a qual não faltariam
todos os apoios e mais uns quantos… nas palavras dos políticos que
“venderam” esta ideia poética aos professores e ao País. É por isso que
Isabel, a trabalhar num Jardim de Infância de um bairro problemático de
Lisboa, com uma sala que nem tem as dimensões regulamentares, tem duas
crianças com Necessidades Educativas Especiais integradas num grupo que
não usufruiu de redução de número, como devia, e está a funcionar nestas
condições partilhando a Assistente Operacional com outro grupo. Também
ela tem que esperar à porta da sua sala, seguindo com o olhar o percurso
que as crianças fazem pelo corredor até ao WC, deixando de estar com o
grupo para assegurar que o trajecto é feito em segurança e que a criança
não se perde pelos labirintos de uma escola com uma dimensão
desumanizada e desajustada para a sua idade.
Junto-me com as colegas e partilhamos
desabafos. Temos idades diferentes, mas há algo em comum. Estamos no
início do ano lectivo e já quase à beira de um ataque de nervos.
Trabalho de qualidade passa a ser uma miragem e a frustração e o cansaço
instalam-se, cada vez mais depressa, a cada ano que passa. Como
desenvolver projectos bem estruturados, se nem a questão da segurança
física e emocional das crianças está assegurada?
E sou tentada a fazer comparações com uma
realidade que conheço. A Experiência Pré-Escolar de Reggio Emilia
(Itália) é considerada pioneira em qualidade de Educação de Infância a
nível mundial. Cada grupo tem 1 (um) Educador e 2 (duas) Auxiliares!
Cada Instituição tem ainda 1 (um) atelierista que trabalha em Artes com
as crianças, e o município conta com 1 (uma) pessoa formada em Teatro
que trabalha com todos os Jardins.
Sou Educadora há 30 anos. Tenho paixão
pelo meu trabalho e não poderia fazer outra coisa na vida.
Felizmente, tenho a sorte de estar num Jardim de Infância de aldeia e
com pessoal suficiente para exercer a minha missão com qualidade e
dignidade, mas sinto um desgosto profundo ao assistir à forma como se
trata a Infância e os profissionais de Educação em Portugal. Os erros
são muitos e crassos e estão generalizados. Não há visão de futuro e o
abismo está perigosamente perto. O sistema suga toda a energia de
Educadores e Professores, que só sobrevivem ao caos se tiverem uma saúde
mental de ferro. Ao fim de um mês de trabalho, muitos dizem,
desalentados, que não sabem se vão aguentar até ao fim do ano lectivo.
PS – Os nomes das minhas colegas são
fictícios. Vivemos numa era de incertezas e, infelizmente, o receio não
aconselha a “dar a cara”.
Helena Martinho
Educadora no Jardim de Infância do Vimeiro