Até junho de 2013, serão aprovadas as últimas tranches
dos empréstimos da troika ao Estado Português. O fim do nosso “resgate
financeiro” está, então, para muito breve, embora o programa de
ajustamento se prolongue ainda por mais um ano. Só que, com a recessão
económica da Zona Euro, a redução do PIB nacional, a queda das receitas
fiscais e, ainda, com o crescendo do valor dos pagamentos da dívida
pública e respetivos juros – não apenas aquela associada à troika, como a
dívida prévia (ver Gráfico seguinte) – não é expectável que o Estado
Português venha a estar, ainda este ano, em condições de emitir nova
dívida pública a juros comportáveis. De acordo com o memorando de
entendimento entre Portugal e a troika, tal deveria ocorrer em setembro
de 2013.
Fonte: IGCP (Retirado do Relatório Preliminar do Grupo Técnico da Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida Pública – IAC)
Mas o rácio da dívida pública Portuguesa para o PIB está já nos 122,5%. O que, de acordo com o FMI, ultrapassa o limiar mínimo da insustentabilidade. E, na previsão do banco Citigroup,
esse rácio pode ainda crescer no ano de 2014 – até aos 140%! As
previsões da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública – IGCP
antecipam, igualmente, um crescendo dos pagamentos associados à dívida
pública Portuguesa, com picos sucessivos em 2016, e em 2021 (ver Gráfico
anterior). Ou seja, previsivelmente, o desfasamento entre a dívida
pública e a produtividade nacional ainda vai agravar-se nos próximos
anos.
Face a este cenário deprimente, Vítor Constâncio, vice-presidente do
Banco Central Europeu, e Oli Rehn, comissário europeu dos Assuntos
Económicos, já anteciparam a necessidade de um segundo programa de resgate financeiro para Portugal. Ou seja, os exatos passos da via-sacra Grega.
Pela positiva, tal resgate soaria ao toque de finados para o XIX
Governo Constitucional de Portugal. Já que não é minimamente expectável
que o Governo de Portugal possa superar a derradeira prova do fracasso
das suas políticas de austeridade expansionista.
Está aberta, então, a janela de oportunidade para os cidadãos,
movimentos sociais, sindicatos, organizações não governamentais, e
partidos políticos da Esquerda Portuguesa, convergirem em torno de uma
alternativa comum para ultrapassar a crise e recolocar o País no rumo do
desenvolvimento económico sustentável.
O seguinte é um roteiro possível, construído a partir das ideias e
propostas transversais aos partidos políticos da Esquerda Portuguesa, e
aos diversos movimentos de cidadania que já responderam à chamada – mais
notavelmente, a Auditoria Cidadã à Dívida Pública, o Manifesto para uma Esquerda Livre, e o Congresso Democrático das Alternativas.
Primeiro Passo: Reconquistar a soberania
Qualquer análise conscienciosa sobre as contas do Estado Português
redundará numa conclusão incontroversa. A reestruturação da dívida
pública é inevitável.
Como prevê o Orçamento de Estado de 2013,
116,4 mil milhões de euros da despesa pública Portuguesa (183,8 mil
milhões) vão diretamente para amortizações da dívida, e 7,2 mil milhões
para os juros associados. Tal significa que 67,2% da despesa pública
Portuguesa deste ano é dirigida unicamente para a gestão de dívida e
juros. Aliás, só os juros correspondem a 9% da despesa.
Por contraste, apenas 15,5% da despesa é canalizada para as funções
sociais do Estado, com a Saúde a contar com 7,9 mil milhões de euros
(4,3%), a Educação e a Ciência, 7,0 mil milhões (3,8%) e a Solidariedade
e Segurança Social, 8,9 mil milhões (4,8%). Ou seja, qualquer programa
em prol da sustentabilidade financeira do Estado Português, que se
baseie na redução da dotação orçamental destes setores, é perfeitamente
ridículo.
Mas essa tem sido, de facto, a estratégia seguida pelo Governo de
Portugal – a via da “austeridade expansionista” – reduzir a despesa
pública, através das reduções de salários e prestações sociais, e pelos
despedimentos na função pública; e o incremento da receita, através da
subida da carga fiscal (a maior da Europa).
Esta estratégia só poderia ter sucesso com a destruição quase total do
Estado Social em Portugal, acompanhada de algum milagre económico, que
garantisse criação de emprego, crescimento do PIB, receita fiscal, e
redução dos juros associados à dívida pública Portuguesa, num prazo
curtíssimo. Para todos os efeitos, é uma combinação impossível, o que,
de resto, tem sido confirmado pelas sucessivas revisões por cima dos
défices acordados com a troika, desde o início do Pacote de Assistência
Económica e Financeira (PAEF).
É importante assinalar que, na senda do PAEF, 42,5% da dívida pública
Portuguesa é já propriedade do Fundo Monetário Internacional, Banco
Central Europeu e Comissão Europeia (ver Relatório preliminar da Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida Pública). E, de acordo com as contas do Professor Castro Caldas,
esta percentagem irá ainda crescer nos próximos anos, subindo
eventualmente até aos 80% no próximo ano. Deste modo, as instituições
que compõem a troika, e que regem o nosso programa de “ajustamento
estrutural”, são também os principais credores da nossa dívida. Serão
assim estas, os nossos interlocutores em qualquer processo de
reestruturação que se queira significativo, e não governos estrangeiros,
fundos de cobertura e de investimento, seguradoras, bancos nacionais ou
estrangeiros, ou agências de classificação de risco de crédito.
E, se já é evidente a iminência de alguma forma de renegociação da
dívida pública Portuguesa, e que ela ocorrerá junto da troika,
precisamos então de avançar para a questão subsequente. Que
reestruturação requeremos?
No mínimo, o prolongamento dos prazos do pagamento das amortizações,
que permita suavizar as dotações orçamentais anuais dedicadas à dívida
(a “reestruturação suave”). De resto, desde muito recentemente,
esta é a estratégia seguida pelo Governo de Portugal – uma inversão em
relação aos dois anos anteriores e, em si mesma, uma admissão de
fracasso.
Mas, desejavelmente, é já a própria redução do valor nominal da
dívida e dos juros associados (o “corte de cabelo”) que já deve ser
colocada em cima da mesa. Uma via que, de resto, é preconizada pelos
três partidos da Esquerda Portuguesa – Partido Socialista, Partido Comunista Português, e Bloco de Esquerda.
O incumprimento parcial da dívida comporta, claro, riscos políticos e
económicos, nomeadamente a exclusão futura dos mercados e a fuga de
capitais nacionais.
Só que, as eventuais consequências da perda da reputação nacional
podem, e devem, ser relativizadas: 1) qualquer eventual exclusão do País
dos mercados financeiros seria, quanto muito, de curta duração (um ou dois anos, no máximo), e perfeitamente exequível, caso enquadrada por um novo programa de financiamento da troika – que, de resto, é praticamente inevitável;
2) os títulos de dívida pública Portuguesa seriam valorizados, caso a
sustentabilidade financeira do País fosse acompanhada de políticas de
investimento, que alavancassem o crescimento económico; e 3) o Euro em
si sairia valorizado, caso o desenvolvimento económico de Portugal, e da
restante periferia, estivessem assegurados.
Ou seja, de um ponto de vista estritamente contabilístico, as
instituições que compõem a troika têm mais a ganhar com o incumprimento
parcial do pagamento da dívida Portuguesa, do que com a manutenção da
via recessiva que, de qualquer modo, também não irá conduzir ao
pagamento total da dívida e que, essa sim, tem levado à fuga de capitais.
A acompanhar a reestruturação da dívida pública Portuguesa, a proposta do eurodeputado Rui Tavares,
para a criação de aplicações financeiras dirigidas aos contribuintes
Portugueses, contra descontos no pagamento de impostos, poderia também
contribuir para um certo nível de solvabilidade e autonomia financeira
do País. Deste modo, ajudando à poupança interna, e evitando a fuga de
capitais.
Segundo Passo: Retomar o desenvolvimento
Mas a reestruturação da dívida pública Portuguesa não vale por si só.
Se vier acoplada a novas ou velhas medidas de austeridade, irá apenas
atenuar um longo período de contração económica e agonia social. Uma vez
que não é realista acreditar nas previsões do Governo de Portugal, e da
troika, de que a economia Portuguesa se vai tornar subitamente
excedentária, sobra-nos a outra alternativa para gerir os
inevitáveis défices dos próximos anos. A reestruturação da dívida
pública Portuguesa tem de ser acompanhada por medidas de estímulo
económico, que garantam a criação de emprego, sustentabilidade das
pequenas e médias empresas, e crescimento do PIB no curto prazo.
Coloca-se então a questão das fontes de financiamento disponíveis.
Por um lado, podemos render-nos ao preconceito ideológico do Ministro
das Finanças, Vítor Gaspar, e acreditar, simplesmente, que “não há dinheiro”.
Por outro lado, podemos atender aos instrumentos financeiros
existentes, e potenciais, e articulá-los no quadro de um programa
ambicioso e criativo, tendo em vista a promoção da coesão social e do
desenvolvimento económico sustentável no nosso País.
Por exemplo, António José Seguro,
secretário-geral do Partido Socialista, apresentou uma série de medidas
articuladas em torno de um banco público de fomento, baseado em fundos
comunitários e no Banco Europeu de Investimentos. Tal Banco capitanearia
uma estratégia de captação de investimentos Europeus, em prol da
economia nacional, inclusive nas áreas da economia social, economia
verde e reabilitação urbana. Adicionalmente, podia corresponder a
desígnios nacionais como a investigação científica e a cultura.
De acordo com as sugestões do Partido Socialista,
seria possível angariar até 14 mil milhões de euros, entre fundos do
QREN (mil milhões), Banco Europeu de Investimentos (5 mil milhões),
empréstimos da troika não utilizados (3 mil milhões dirigidos para a
capitalização da banca nacional, e 2 mil milhões extraordinários
devidos a alterações cambiais) e, ainda, de um eventual pedido de
reembolso dos lucros obtidos pelo BCE pelas operações de compra de
dívida soberana (3 mil milhões). Para efeitos de comparação, assinale-se
que o Orçamento de Estado de 2013 canaliza cerca de metade daquele
valor (7,4 mil milhões) para o apoio à atividade económica nacional.
Claro que a afetação de uma parte substancial dos fundos em questão
decorre da anuência das instituições que compõem a troika. Por exemplo, Oli Rehn
desaconselhou a reafetação dos fundos originalmente destinados à banca
nacional. Mas, e tal como no caso das negociações para a reestruturação
da dívida pública, o sucesso da defesa dos interesses nacionais depende,
em grande medida, da motivação política, inteligência e capacidade de
argumentação dos nossos Governantes. Ou, em sentido mais lato, da sua
competência.
De qualquer modo, de modo a prevenir a dificuldade em angariar fundos
Europeus para um banco de fomento, poderíamos recorrer à proposta de Rui Tavares
para a criação de um banco de operações mutualistas “que tivesse
liberdade para se financiar no mercado, que tivesse uma presença muito
grande de ONGs e fundações e que tivesse um mandato sugerido pelo Estado
de apoio às atividades económicas de ponta.” Entre as áreas que Rui
Tavares identifica como prioritárias, incluem-se o turismo e o lazer de
qualidade, a reabilitação urbana, a ciência e a cultura. Idealmente, as
propostas de Rui Tavares e do Partido Socialista podiam ser articuladas
no quadro de um programa nacional de estímulo económico e de promoção da
coesão social.
Terceiro Passo: Reedificar um Desígnio
Finalmente, à reestruturação da dívida pública, e ao programa de
estímulo económico, não pode vir simplesmente acoplada a prossecução da
austeridade expansionista. Deste modo, para além da redefinição das
modalidades e do prazo, é a própria revisão aos pressupostos do
memorando acordado com a troika, que é necessária. As privatizações dos
monopólios naturais e dos setores estratégicos da economia Portuguesa, a
flexibilização da legislação laboral e ambiental, a redução da proteção
social e dos custos unitários de trabalho, não são apenas as meras
opções conjunturais de um determinado Governo. São, de facto, os
alicerces de um projeto ideológico profundo, que a Esquerda Portuguesa
deve denuciar e rejeitar inequivocamente.
E, para confrontar o avanço desse Processo Reacionário em Curso,
precisa de apresentar uma narrativa política alternativa. Mantendo um
compromisso histórico com o seu ideal de organização social e económica,
que se materializou no modelo social europeu, e que norteou a
edificação da sociedade democrática Portuguesa, mas estudando e
definindo novos instrumentos e estruturas que se contraponham às opções
neo-liberais, face à conjuntura adversa. A reação à reação, antes que
seja tarde demais.
No meu próximo texto, seguirei a resposta da Esquerda do século XXI,
em Portugal e no Mundo, desde os novos movimentos ativistas e de
cidadania, dos sindicatos e cooperativas, das associações de defesa dos
direitos humanos, das organizações não governamentais, até aos partidos
políticos progressistas. Da Esquerda que se bate pela defesa de um
paradigma socioeconómico horizontal, solidário, ecológico e
regionalista.
Enfim, da Esquerda que nos une e, que, neste momento histórico, é muito mais importante do que a Esquerda que nos separa.