Recentemente, a propósito do assassinato de cartoonistas e outros franceses, entre os quais quatro judeus, em Paris, o jornalista Jonathan Freedland intitulou um artigo, no The Guardian, de 9 de Janeiro, com a seguinte frase: "First they came for the cartoonists, then they came for the Jews." Esta frase inspirou-se numa outra do pastor luterano alemão Martin Niemöller, alertando contra a indiferença das pessoas face às perseguições contra os “outros”, na Alemanha nacional-socialista.
Se é certo que a História não se repete, pois os contextos diferem consoante os períodos, mas não deixa de ter matrizes idênticas, devido à agência humana do processo decorrido no passado. Por isso, a História, enquanto disciplina que recorda o passado, para além das memórias particulares, não deixa de ser um importante instrumento de alerta, para que crimes idênticos, cujos antecedentes se assemelham não se repitam. Neste caso alerta e lembra o que pode provocar o aumento do anti-semitismo e a indiferença face a ele e às perseguições. Da mesma forma alerta e lembra o Dia internacional de Lembrança ou de Memória do Holocausto, instituído pela ONU em 2005, assinalando o dia da libertação de Auschwitz.
Hoje, dia 27 de Janeiro de 2015, ano em que se comemora também o septuagésimo aniversário do final da II Guerra Mundial, decorrem precisamente os mesmo 70 anos da libertação, pelas tropas soviéticos, de Auschwitz, nome que é um símbolo do maior crime cometido contra a humanidade – o Holocausto, ou Shoah. Ou seja, o extermínio de pessoas, pelo simples facto de terem nascido judeus, considerados pelos nazis como fazendo parte de uma “raça” que não mereceria, segundo eles, habitar a face da terra.
Na sua ofensiva geral na frente leste, o Exército Vermelho chegou, em 27 de Janeiro de 1945, a Auschwitz, onde encontrou cerca de 7500 prisioneiros, deixados no campo. Os soldados e oficiais soviéticos aperceberam-se de que um crime sem precedentes tinha ali sido cometido. Com a libertação dos campos de Bergen-Belsen, pelas tropas britânicas, e de Buchenwald e Dachau, pelo Exército norte-americano, pela primeira vez, observadores ocidentais confrontaram-se com os horrores cometidos pelos nazis. Muitos dos sobreviventes desses campos tinham chegado, evacuados em "marchas da morte" de Auschwitz, descritos por todos como os piores campos.
Mas muito haveria ainda que ser depois investigado, no pós-guerra, até que se conhecesse a realidade dos campos de extermínio, distintos dos outros campos de concentração, e onde a maioria das vítimas tinham sido judeus. O plano nazi de aniquilação de todos os judeus da Europa, bem como a função dos campos de extermínio de Belzec, Chelmno, Treblinka, Majdanek, Sobibor e Auschwitz Birkenau só mais tarde seriam verdadeiramente conhecidos, também devido à dificuldade de “compreender” que um crime sem precedentes tinha sido cometido numa escala industrial de milhões de mortos.
Etapas para o Holocausto
Ainda mais tempo decorreria até que os historiadores concordassem que o processo que levou ao Holocausto (ou Shoah) decorreu por etapas, num processo sem retorno cujo seguimento e desfecho seriam inimagináveis, à época da chegada dos nazis ao poder. Ao colocar o anti-semitismo racial no centro da sua ideologia e prática, o regime nacional-socialista começou por definir a figura do judeu e apelar, logo em 1 de Abril de 1933, ao boicote ao comércio judaico. Os nazis prosseguiram com a legislação de exclusão dos judeus das profissões liberais e da função pública e, através das Leis de Nuremberga, de Setembro de 1935, ano em que as SS ficaram com a direcção dos campos de concentração, atribuiu um estatuto de cidadania e "sangue" diferente aos judeus.
Seguiu-se uma política de expropriação e de “arianização” do património dos judeus, levada a cabo paralelamente com a “emigração”/expulsão destes dos territórios alemães, de modo a fazer deles “purificados de judeus” (Judenrein), nomeadamente a partir de Novembro de 1938. A II Guerra Mundial, iniciada em Setembro de 1939, com a invasão da Polónia pelas tropas da Wehrmacht, dificultou, no entanto, a emigração-expulsão e, com a sucessiva ocupação de outros países, a Alemanha nazi ficou com mais três milhões de judeus, da Checoslováquia, Áustria e da Polónia, o país europeu onde havia mais judeus.
A partir de Junho de 1941, com a invasão da URSS iniciada em 22 de Junho, a política nazi relativamente aos judeus mudou e já não mais passou pela expulsão destes, mas, sim, pela concentração e o seu enclausuramento em guetos, antes da deportação para os campos de extermínio, onde viriam a ser assassinados em massa. Efectivamente, houve uma nova etapa em direcção ao Holocausto, devido à emissão por Hitler e pelas autoridades SS da ordem de dar plenos poderes aos Einsatzgruppen – batalhões de polícia que seguiam as tropas nazis e viriam a ser responsáveis pelo assassinato de cerca de dois milhões de pessoas – e, por outro lado, devido às directrizes sobre a actuação de combate a leste relativamente aos "comissários políticos" soviéticos, dando ordem (Komissarbefehl) para que todos fossem fuzilados, assim que capturados. Dada a identificação e amálgama nazi dos comunistas com os judeus, esta ordem passou rapidamente a atingir civis, mulheres, crianças e velhos.
A relação entre eliminação física a leste, a impossibilidade de chegar a uma solução territorial e a missão confiada a Reinhard Heydrich e ao Reichsführer SS, Heinrich Himmler, de conceber uma solução de conjunto do problema judeu nos territórios sob domínio alemão desembocou na "solução final". Em 13 de Outubro, Himmler decidiu a construção de um campo em Belzec, na Polónia, onde os judeus seriam mortos, através do gás dos tubos de escape de camionetas. Outro centro semelhante seria erguido em Chelmno. No entanto, também era claro que os fuzilamentos em massa, bem como a utilização das carrinhas de gás não resolviam o problema da escala de extermínio pedida por Himmler.
A posição das SS triunfaria sobre as outras facções nazis com a conferência de Wannsee, convocada para 20 de Janeiro de 1942, por Heydrich, onde este e outros 15 dirigentes nazis viriam a delinear a sequência e a logística da "Solução Final da Questão Judaica Europeia". Nessa conferência, foi definitivamente decidida, em substituição da "emigração", a "evacuação dos judeus em direcção a leste", opção que já constituía "uma experiência prática muito significativa para a próxima solução final da questão judaica" europeia, que abrangeria mais ou menos 11 milhões de judeus.
E Auschwitz?
Auschwitz, na realidade um complexo de vários campos, de concentração (Auschwitz I), de extermínio (Auschwitz II-Birkenau) e de trabalho escravo (Auschwitz III-Buna-Monowitz), situado perto de Oswiecim (Auschwitz, em alemão), perto de Cracóvia, na Alta Silésia, anexada pela Alemanha nazi à Polónia, foi considerado o instrumento e símbolo do Holocausto. Estima-se que cerca de pelo menos 1,1 milhão de judeus foram ali assassinados, a par de mais de 70.000 polacos, 21.000 ciganos e cerca de 15.000 prisioneiros de guerra soviéticos.
Em 1 de Março de 1941, Heinrich Himmler ordenou o alargamento do Auschwitz I, ou campo principal (Stammlager), de modo a que ali se passasse a eliminar judeus, o que aconteceu em Agosto desse ano. Em Setembro, as SS testaram, nesse campo, o gás Zyklon B, como instrumento de massacre em massa. Em 22 de Julho, iniciaram-se as deportações dos judeus de Varsóvia para o campo de extermínio de Treblinka, onde foram mortos cerca de 800.000 judeus em quatro meses. Depois Himmler ordenou a deportação de todos os judeus dos territórios ocupados para Auschwitz.
Em 8 de Outubro de 1941, começou a ser erguido, junto a Auschwitz I, um complexo maior, conhecido por Auschwitz II-Birkenau, cuja primeira câmara de gás provisória começou a operar em Janeiro de 1942. Entre Maio e o Verão morreram cerca de 800.000 judeus vindos da Hungria, continuando as operações de gazeamento até Novembro de 1944, quando Himmler ordenou a destruição das câmaras de gás e a evacuação dos 60.000 prisioneiros de Auschwitz, através das "Marchas da Morte", em direcção aos campos de concentração a oeste.
in: Público