Ana Catarina Oliveira |
Coimbra, Julho de 1864
Caros amigos
A
Fatalidade, que me persegue, com uma tenacidade verdadeiramente paternal não me
quis poupar – não quis deixar sem coroa este templo da sandice e ridículo
chamado formatura; não lhe tremeu a mão adunca e férrea escrevendo no
livro-caixa do Fado esta sibilina palavra BACHAREL!!
***
Longe
vão os tempos em que terminar um curso superior e ser Doutor era um orgulho.
Hoje vejo esse término de um percurso como a sentença fatal de que nos fala
Antero de Quental.
No rescaldo da
Queima das Fitas que animou a comunidade estudantil por todo o país, dou cada
vez mais razão a um Douto professor meu que logo no primeiro ano da Faculdade
nos alertava para o verdadeiro significado da cartola e da bengala: os
quintanistas saem à rua, de cartola bengala e laço, para se assemelharem a
palhaços, para serem alvo de risos e de chacota de quem os vê passar, sabendo que
no fundo não valem nada. Achei terrível esta interpretação, destruidora dos
sonhos de qualquer caloiro. Mas hoje, atendendo à conjuntura actual, verifico
que aquela que poderia ter sido uma espécie de brincadeira praxística foi no
fundo um alerta para tudo o que estaria para vir.
Entrei
para o curso de Direito em 2006, com contrato assinado por 5 anos. Subitamente,
uma cláusula chamada Bolonha reduziu o curso para 4 anos e introduziu a
novidade dos mestrados. Terminada a licenciatura em 2010, eis que sou
implicitamente obrigada a fazer um mestrado, pois: (1) se não o fizer fico
prejudicada a nível de mercado e certas carreiras exigem-no, (2) os 4 anos são
insuficientes para a formação (introduziu-se Bolonha sem pensar nas
consequências). Pois bem. Hoje saímos todos da Faculdade de Direito como
Mestres e sem a mínima expectativa no mercado que não nos quer acolher. Enviam-me
cartas endereçadas à “Ex.ma Senhora Dra.”,
“Cara Dra.”, “Caríssima colega” – balelas formais; preciosismo de quem não dá o
mínimo valor mas vê-se obrigado àquele trato.
Para
quem tira Direito o caminho é ainda mais penoso. Terminado o curso, ainda muita
água há-de correr até que a profissão deixe de ser “estudante”. Com os
concursos públicos congelados ou então controlados pelo Sr. Cunha (nota: eu sei
que já abriu o concurso para o CEJ, calma. Mas o Sr. Cunha também sabe!), não
podemos ser magistrados, juízes ou continuar a sonhar com uma colaboração na
Polícia Judiciária. Valha-me a Ordem dos Advogados, que apesar de não implicar
um concurso público, obrigou-me a tirar todo o dinheiro que estava debaixo do
colchão e a enfrentar o Adamastor dos tempos modernos – Excelentíssimo
Bastonário da Ordem dos Advogados: valores elevadíssimos por formações fracas à
base do q.b., 6 exames numa semana (2 por dia), estágios não remunerados como
que se de uma exploração das nossas competências se tratasse.
Se hoje sou Dra., só se for da mula
russa. Ser licenciada ou mestre é quase equivalente a não ter curso superior, embora
haja uma avassaladora diferença: mais desilusões, menos expectativas, maior
sacrifício monetário, maior receio quanto ao futuro que não o chega a ser. Todos
os dias sou exposta a testes de resistência e à concorrência desleal. Sinto que
sou mais uma no meio de tantos jovens qualificados num país precário, que tem
medo de arriscar, que protege apenas aqueles que têm uma carreira já
consolidada e que teimam em não dar espaço à frescura dos vinte anos.
Sinceramente,
não preciso que me chamem de Dra. Preferia ter a oportunidade de o ser.
Tal como dizia Antero, “este trecho duma
meditação que actualmente componho (…), vos dará ideia do estado moral do vosso”.
in: TVS