Eis o político predestinado: muda de ideias e fica onde está


Ouviu-se na raia do Magrebe, tão formidável foi o grito. Estava Carlos Abreu Amorim em gostosa flutuação nas águas mortas e espessas do oportunismo, quando lhe assomou uma ideia à cabeça e um berro ao gorgomilo: "Eureka! Já não sou liberal! O Estado faz aqui muita falta!"

Repórteres do Público recolheram a magna declaração e procuraram acompanhar, com a dificuldade que se adivinha, o itinerário do pensamento lapidar do eminente político e professor de universidade, conquanto particular. Que dedicara a sua vida adulta a estudar os Hayeks, os Friedmans, os de Chicago e os liberais políticos clássicos e, como tal, esconjurava o papel do Estado na economia. Porém, a crise internacional e o crucial papel desempenhado por sua excelência na comissão de inquérito trouxe-lhe uma iluminação de Espírito Santo - o etéreo, o lá de cima... - e lhe mostrou a função salvífica do Estado forte.

Desta pasta se fazem intelectuais e tonitruantes professores da nossa Academia (nossa, vírgula: se fosse nossa rifava a minha parte). Diz sua excelência que estudou muito aqueles autores. Não estudou: empinou. Marrou muito. E ficou tudo colado com cuspo. Não conseguiu perceber que para esses pensadores, o papel do Estado nunca desapareceu. Aliás, se tirasse as palas e visse mais alargadamente, se observasse a história, perceberia que é imperativo e essencial para uma sociedade de economia liberal existir um Estado forte e interventivo. O capitalismo dos Estados Unidos, por muito "desregulado" que se afirme, nunca dispensou os instrumentos de repressão, como Bernard Madoff se vai inteirando nos próximos 145 anos. Lá não é preciso propagandear qualquer Simplex: num dia consegue-se abrir um estabelecimento. Só que o investidor recebe um regulamento muito especificado do que precisa de cumprir para manter a casa aberta, quando não, fecham-lhe a loja. E se o incumprimento afetar a saúde pública dá direito a cadeia. O Estado, mais do que respeitado, é mesmo temido no capitalismo mais liberal.

Foi esse o erro trágico da União Soviética, quando implodiu. Extinguindo-se o Partido Comunista, desapareceu o Estado - e nasceu a leste uma nova Chicago dos anos 30, ainda não completamente domesticada. Os russos agradecem a Putin os seus esforços, não por estar no horizonte a restauração do ideal socialista, mas por se reconstituir o Estado forte.

Mais avisados foram os chineses, que mudaram de rumo mantendo o Partido no poder. Com certeza que houve dirigentes que se locupletaram à grande, mas a verdade é que os capitalistas chineses andam com pezinhos de lã, não vão despertar a fúria do Estado. E de vez em quando, na Rússia e na China, tal como nos Estados Unidos, lá vai um criminoso passar uma eternidade à prisão quando não, como na China, é diretamente transferido para a eternidade, pagando a família as balas.

Aquerela sempre presente é a de saber qual o papel do Estado na economia, se ativo ou supletivo. Deve ou não haver empresas nacionalizadas? Quem olha para os Estados Unidos diz que lá não há, mas é um engano: recordam-se de que, nos anos 80, às zero horas de determinado dia, Ronald Reagan despediu instantaneamente cinco mil controladores aéreos? Tanto quanto parece, as companhias aéreas são privadas, não são necessárias companhias de bandeira, dada a dimensão do país e do mercado aéreo - mas o controlo aéreo é assegurado pelo Estado. E assim o é, sempre que necessário, a nível municipal, estadual ou federal, sempre que as necessidades públicas o justifiquem. O problema é saber se em sociedades de pequena dimensão como a maioria dos países europeus, pode ser aplicado de chapa o modelo norte-americano - ou se o Estado tem de estar mais presente, não já por razões ideológicas, mas por imperativos da economia.

Carlos Abreu Amorim, professor de universidade, conquanto particular, insisto, diz que deixou de ser liberal. Mas não deixou de ser ignorante e não perdeu a oportunidade de demonstrar a inanição cultural que em pouco tempo o alcandorou ao pódio como o político mais crasso, trauliteiro e agora cata-vento oportunista.

Os jornalistas do Público que o entrevistaram (alguma coisa devem ter feito de grave, para terem tal castigo...) deixaram escapar a pergunta óbvia: Mudou de ideias? E continua na mesma função de deputado? Não tem um compromisso com os seus eleitores?

Embora, segundo o desavergonhado retrato que Carlos Abreu Amorim faz do seu partido, como um albergue espanhol, como um carro elétrico onde cabe sempre mais um, por muito avantajado que seja, existe uma questão de honra que se radica no compromisso que o eleito tem com os seus eleitores. Admito que a base de apoio de Carlos Abreu Amorim esteja nos trauliteiros lúmpen-portistas, que verão nele um sólido saco de trincheira para a batalha contra imaginários magrebinos - mas sempre é um compromisso, não é uma predestinação. E um homem de honra, quando muda de ideias, demite-se do cargo para que foi eleito com aquele compromisso, faz a sua travessia no deserto e vai, querendo, procurar refrescar a sua legitimidade eletiva com um novo compromisso.

Temos todo o direito de acreditar que Carlos Abreu Amorim só "mudou de ideias" porque assim foi instruído pelo chefe. O chefe é que não esperava que o seu mesureiro servente erigisse a tarefa em ideologia - que será tão breve quanto lhe for determinado.

Este é o meu último artigo de opinião como Provedor do Leitor do Diário de Notícias. Cheguei ao termo do mandato de três anos não renovável - e ainda bem que não o é! Quando João Marcelino me convidou para estas desassossegadas funções não me sugeriu sequer qualquer compromisso ou caderno de encargos para além do entendimento que eu tivesse do estatuto de Provedor do Leitor.

Entendi - e afirmei-o repetidas vezes nesta coluna - que faria a leitura mais ampla das funções, não me limitando a amodorrar no guiché à espera de queixas e reclamações. E que alargaria os horizontes da intervenção e - porque não? - da pedagogia a incidentes que envolvessem outros órgãos de informação e dos quais se pudessem criar munições intelectuais para defesa dos leitores e dos jornalistas do DN.

Fui intolerante para a com a subserviência aos poderes, fosse por medo ou por conveniência. De tal forma o fui que pode ser-me assacada responsabilidade no catapultar de um intruso do jornalismo para efémero secretário de Estado e tachos sequenciais. Dei combate à grosseria de linguagem - até em artigos de opinião, usualmente de fora do âmbito de intervenção de um provedor - e atalhei sempre que pude contra o recurso a comentários de fontes não identificadas.

Parti da minha experiência de (agora) 40 anos de jornalismo - celebro-os no dia 2 de janeiro! - e de dois princípios: o caráter aristocrático da nossa profissão e a ética.

Não entendo o jornalismo como um poder mas como um serviço. Daí ele ser aristocrata: saber que podemos muito mais do que nos permitimos, por respeito pelo público. Escrevi, no meu primeiro artigo, a 12 de janeiro de 2012:

"A liberdade de que nós, jornalistas, desfrutamos não é um privilégio para nossa fruição exclusiva, é um serviço aos outros. Temos direitos e garantias, reconhecidos constitucionalmente e por convenções internacionais, mas precisamos de saber por que motivos tais direitos e garantias nos foram outorgados. Porque é que somos uma profissão protegida? Só pode haver uma resposta: os jornalistas são protegidos, são-lhes garantidas liberdades, porque trabalham para a liberdade, a liberdade dos destinatários da mensagem jornalística.

"Respeitam-nos a liberdade para espalharmos e ampliarmos a liberdade. Um abusador transforma essa liberdade num seu privilégio, com o que imediatamente a falsifica numa usurpação da liberdade. A fidalguia está em servir a liberdade e o seu primeiro exercício é respeitar o compromisso de ampliar a liberdade dos outros. Jornalismo é ler o mundo e contar o mundo. E para quê? Para que quem venha a ler o mundo através do que lhe contamos, fique mais capacitado para fazer juízos de valor ponderados sobre aquilo que lhe é contado."

Esta formulação entrelaçava-se com os propósitos de ética, com finalidades e métodos bem diversos dos do direito: "Nestas coisas do jornalismo, tenho uma intransigência verdadeiramente ideológica: quero que me contem, do mundo, pelo menos duas versões - e deixem-me escolher em paz. No fundo, quero aquilo que qualquer pessoa deve exigir. Nisso, serei absolutamente cúmplice do leitor - venha o jornalista que vier!"

Aqui está o caderno de encargos que para mim próprio rabisquei, como lema de vida - e que passei a limpo, para o público, na minha apresentação.

A palavra aos destinatários. Por aqui me fico.

A única perplexidade que até de mim se apodera é esta: por amor de que alforreca ou peixe-aranha fui eu ressuscitar, na despedida, esse cadáver irritante Carlos Abreu Amorim? Um pouco pela tendência irreprimível para o burlesco. Mas, decerto, para fazer o gosto ao dedo no gatilho desta caçadeira de cartuchos de sal que lhe hão dificultar, como diria o Eça, aquele "amoroso esponjar de fartas nádegas" nas exíguas cadeiras de São Bento.