A candidatura de Trump é tão grotesca que damos imediata razão a Mel Robbins, comentadora da CNN, quando escreve isto: “At this point, I believe that Donald Trump, as he has suggested, could actually shoot someone and it would not matter to the 40-45% of Americans who still appear to be voting for him” – The Trump tape doesn’t matterAcontece que estas palavras vieram a público antes do debate, antes de vermos Trump usar quatro mulheres social e mentalmente fragilizadas, tenham ou não tenham razão nas suas queixas nunca provadas contra Bill Clinton, como carne para o seu canhão populista e fascizante. Antes de vermos um candidato presidencial norte-americano, e num debate, a ameaçar de prisão a sua adversária na corrida presidencial caso consiga ser eleito e propondo-se manipular o sistema de Justiça para o efeito. Tal nunca antes tinha acontecido na História não só dos EUA mas da maioria, se não for mesmo a totalidade, das democracias onde esteja em vigor um Estado de direito respeitado pelo sistema político.
Porém, contudo, todavia, há várias facetas do que se está a passar do outro lado do Atlântico que são análogas ao que se passou e passa aqui no rectângulo. O mutatis mutandis é fácil de estabelecer:
– Em 2004 e 2005, o CDS e o PSD aceitaram e promoveram uma campanha de calúnias, apoiada por órgãos de imprensa, onde o secretário-geral socialista ao tempo foi carimbado como corrupto e homossexual.
– Em 2008 e 2009, o CDS, o PSD e o Presidente da República ao tempo alinharam a estratégia para a derrota do PS nas eleições de Setembro de 2009. Essa estratégia passou pelo regresso das calúnias, pelos assassinatos de carácter e pela espionagem de um primeiro-ministro em funções através de uma pessoa das suas relações pessoais com quem mantinha uma comunicação que permitia capturar conteúdos das áreas governativa, política, partidária, económica e pessoal. Tendo falhado por inexistência de provas o plano para constituir Sócrates como arguido numa caso de “atentado ao Estado de direito”, ou que fosse tão-só conseguir levá-lo a prestar declarações ao Ministério Público em cima da campanha eleitoral, foi lançada a “Inventona de Belém” a 5 semanas das eleições, uma réplica exacta, mas em versão cavacal, das “October surprises” americanas.
– De 2009 até hoje, a direita decadente – leia-se, a que não repudia a baixa política e golpadas dos que querem o poder pelo poder – repete a cassete de que Sócrates e o seu Governo foram protegidos pelos Procurador-Geral da República e Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ao tempo. Apesar das violações do segredo de Justiça e de os documentos do processo estarem agora ao dispor do público, nunca quem calunia e difama estas pessoas e instituições apresenta qualquer prova de ter havido qualquer ilegalidade no arquivamento. A argumentação a que se agarram é irracional, infantil e odiosa. Na sua distorção cognitiva, conseguem apagar o facto de todas as escutas a Sócrates, na sua versão integral, terem estado e continuarem a estar ao dispor das autoridades, dos jornalistas e dos adversários e inimigos de Sócrates e do PS.
– Directamente ligada com a acusação anterior, surgiu em 2011 o discurso de que bastaria mudar uma individualidade no Procuradoria-Geral da República para que tudo o resto mudasse – leia-se: para que Sócrates fosse finalmente engaiolado, juntamente com o seu bando. Essa individualidade dá pelo nome de Joana Marques Vidal e foi a escolha de uma ministra da Justiça que oficializou a nojeira ao comentar o envolvimento de ex-governantes socialistas em processos judiciais recorrendo à expressão “o tempo da impunidade acabou“. Isto é, a PGR estava finalmente descontaminada da corrupção que tinha impedido que esses criminosos fossem apanhados mais cedo.
– Aquando da detenção de Sócrates, um deputado do PSD foi para o Facebook manifestar a sua alegria –“Aleluia!”. Ex-líder da JSD rejubila com detenção de Sócrates – vindo depois a apagar a peça. O que ele fez conseguiu ser, ao mesmo tempo, o achincalhamento moral de um concidadão e ex-governante, a negação do seu estatuto de inocente até prova em contrário, a celebração da judicialização da política, a manifestação de uma barbárie provinciana e o desprezo pelos valores religiosos onde foi buscar a exclamação. Acontece que ele não estava sozinho nos festejos, foi apenas mais estouvado do que muitos dos seus colegas de partido e de facção. Este melro há muito que procurava o supremo consolo de ver Sócrates nas mãos das autoridades policiais e judiciais. Explodiu de prazer com o espectáculo da sua captura.
– Também Passos, depois de ter chegado a presidente do PSD e no aquecimento para as presidenciais de 2011, avançou com a ideia de prender os seus adversários políticos. Foi em Novembro de 2010, e as suas lapidares palavras, à luz do que o seu futuro Governo viria a praticar, são estas: «Quem impõe tantos sacrifícios às pessoas e não cumpre, merece ou não merece ser responsabilizado civil e criminalmente pelos seus actos? Sempre que se falham os objectivos, sempre que a execução do Orçamento derrapa, sempre que arranjamos buracos financeiros onde devíamos estar a criar excedentes de poupança, aquilo que se passa é que há mais pessoas que vão para o desemprego e a economia afunda-se. Não se pode permitir que os responsáveis pelos maus resultados andem sempre de espinha direita, como se não fosse nada com eles.» Este mesmo fulano fez meses depois uma campanha em que prometia tornar Portugal grandioso outra vez, sem ser preciso cortar salários, cortar pensões e fazer despedimentos. Só tínhamos que cortar nas “gorduras do Estado” – ou, indo para o exacto paralelo com Trump, para resolver os problemas da América só é preciso cortar nos mexicanos, nos muçulmanos e, já agora, nos impostos dos mais ricos.
– Igualmente em campanha eleitoral para as eleições legislativas de 2011, foi possível ouvir a Carlos Moedas a sua certeza de que “com as reformas que o PSD vai implementar, eu digo-lhe que ainda vão subir o ‘rating’ de Poertugal, não sei se nos próximos 6 meses, se nos próximos 12 meses“. Esta promessa é de um simplismo mágico que compara ao milímetro com a promessa de Trump de levantar um muro na fronteira do México.
Seria fastidioso listar os restantes exemplos do mesmo propósito populista: usar uma crise económica e social gravíssima para atacar os políticos com responsabilidades governativas numa estratégia de ódio e acirramento da turbamulta. Nesta estratégia, a comunicação social foi decisiva para o clima de caça às bruxas que levou a várias tentativas para conseguir enfiar Sócrates e quem com ele esteve em actividade partidária e governativa numa situação de perseguição judicial. O que faz o Correio da Manhã por sistema, despejando calúnias atrás de calúnias que são criminosas no plano moral e legal, explorando a Lei para violar as leis da República e da comunidade, também em nada se distingue do que fez Trump ao explorar quatro mulheres vítimas não se sabe de que circunstâncias para atacar quem é, para todos os efeitos, inocente das suspeitas e acusações levantadas. E esta marca do desprezo pelo Estado de direito, pela mera decência e pelo valor da palavra, expelindo mentiras com a mesma facilidade com que se dá um aperto de mão, é uma característica em que Passos não está em nada distante de Trump.
Há uma esperança a formar-se, no entanto. A de que este espectáculo de degradação seja o remédio de que precisamos para criar os anticorpos que impeçam que tal se repita seja em que grau e forma for. Se tal acontecer, se sairmos desta desgraça mais fortes, ainda teremos de agradecer a Trump e a Passos por serem como políticos os javardos que são.
in: Aspirina B