Um dos maiores símbolos da história recente de Portugal faleceu no passado sábado. Eterno lutador pela liberdade, foi uma das muitas vozes que enfrentou a ditadura de António Oliveira Salazar e encaminhou o nosso país para o seio da Democracia, da integração Europeia (CEE) e internacional. Ele e muitos outros, fizeram parte de um grande momento da História de Portugal, onde pontificaram os Capitães de Abril – Revolução dos Cravos.
Muito se tem escrito sobre Mário Soares, mas melhor do que perceber uma escrita retrospetiva da sua vida, é necessário entender as suas (difíceis) decisões num determinado tempo, num determinado contexto nacional e internacional e isso, apenas aqueles que viveram esses duros momentos, terão uma visão mais desassombrada e esclarecida do que foi essa época.
Tenho reparado que muitas pessoas ao descreverem Mário Soares, ressalvam logo que este teve aspetos positivos e negativos ao longo da sua vida e não tomam parte, face à sua intervenção pública. Ora isso é precisamente aquilo que Mário Soares sempre foi – Um Homem, com virtudes e equívocos comuns a qualquer um de nós e não era certamente seu objetivo ser uma pessoa consensual, compreendida e aceite pela totalidade das pessoas – era um Político que teve de tomar decisões muito difíceis e, por isso, tantos o criticaram e tantos o admiraram.
Quando se lê muita da repulsa que alguns tinham a Soares, nada disso o poderia preocupar. Como qualquer político que teve a responsabilidade de governar o país numa altura de ruptura face a um regime ditatorial de quatro décadas, existia certamente quem o odiasse. Mas acima de tudo, ele assumia-se como político, não tendo o medo que muitos dos que agora pululam em intervenções públicas/sociais tem, ressalvando sempre uma posição de independência face à política, quando na verdade aquilo que fazem e praticam é exatamente isso mesmo.
Soares não rejeitava a política como outros sempre o fizeram. Soares assumia-se, quer gostassem, quer não.
É por isso que ao longo da última semana, as redes sociais eram um receptáculo de fervorosos adeptos anti e pró Soares, aos quais se deve dar o devido distanciamento a todas estas opiniões, muitas das vezes conspurcadas com teorias da conspiração sem qualquer validade ou verdade, mas que sobrevivem no obscurantismo e, como tudo, uma mentira dita muitas vezes, passa a ser verdade.
A este propósito, o jornal Público elaborou uma peça em que analisa ao pormenor alguns dos boatos que se propagam sobre Soares.
A velha teoria do “exílio dourado” em França, como se fosse agradável estar longe da mulher e dos filhos, impedido de voltar a casa, sob pena de ter preso, torturado, deportado pela PIDE ou até assassinado - é apenas uma das histórias inventadas na altura pelo Estado Novo, de forma a tentar demover e criar dúvidas a todos aqueles que apoiavam Soares e Cunhal.
A alegada profanação da bandeira nacional também nunca aconteceu. O Público afirma que “o incidente teria ocorrido durante uma manifestação em Londres, em Julho de 1973, organizada para contestar a visita de Marcello Caetano ao Reino Unido. Na manifestação, cujos registos são públicos, participaram socialistas e comunistas portugueses e uma miríade de movimentos britânicos de oposição à colonização lusa em África e também ao apartheid. Mas não há registos da suposta profanação do símbolo nacional e muito menos do envolvimento de Soares no ato. O próprio o nega em entrevista a Maria João Avillez (tornada em livro em Mário Soares: Ditadura e Revolução): “Um patriota e um republicano, como eu sou e sempre fui, nunca iria pisar a bandeira da República, que nunca foi a bandeira do salazarismo”. A história, dizia, era uma “imbecilidade”(in: Público).
Por fim, aquela teoria que mais adeptos tem, uma vez que foi capa do jornal A Rua (1977) – jornal de ideologia fascista, citando alegadamente um jornalista brasileiro a quem Soares disse que os Portugueses em África deveriam ser “atirados aos tubarões”. Segundo o Público, não existe qualquer artigo do jornalista Santana Mora, correspondente do jornal brasileiro “O Estado de São Paulo”, que expresse essa frase, sendo uma clara manipulação jornalística durante o período conturbado da descolonização.
A descolonização foi talvez o processo que mais inimigos lhe trouxe, mesmo não sendo ele o principal rosto desta ação – à data, era Ministro dos Negócios Estrangeiros (I, II e III Governos Provisórios), mas também nunca recusou responsabilidades.
Hoje, alguns dirão que a descolonização foi mal feita. É trágico, certamente, Portugueses que viviam em África, ficarem sem o seu património e terem que regressar (ou viajar pela primeira vez) para um local que nada lhes dizia. Contudo, há que entender o contexto de uma medida que era impensável não ter sido tomada.
Após a revolução, dia após dia, havia relatos de deserções de militantes Portugueses em África. Soldados que não estavam na disposição de morrer numa Guerra que nada lhes dizia e que a maioria discordava. Em África, “o PAIGC tinha proclamado unilateralmente a independência em 1974, era reconhecida por mais de 80 países”, a ONU aprovava constantes resoluções contra a manutenção Portuguesa das Colónias, os principais líderes partidários Portugueses eram favoráveis à saída de África (Freitas do Amaral, Cunhal, Sá Carneiro) e o protelar deste combate, com adversários a ganharem cada vez mais força e combatendo contra tropas desanimadas, teria um fim ainda mais trágico e sangrento (in: ISCTE).
Em Portugal faziam-se manifestações sob o lema "Nem mais um soldado para as colónias!" e a comunidade internacional, desde o período do Estado Novo, exigia a Portugal que entregasse as suas colónias, tal como haviam feito os Franceses (na Argélia), Britânicos (na Índia) e Belgas (no Congo). Portugal era assim o último país colonialista Europeu e tinha a pressão constante de aceitar a independência desses países. Se Portugal queria reconhecimento internacional, tinha que fazer a descolonização de forma rápida e com o mínimo impacto possível, mas obviamente que muita coisa correu mal. Afinal, estamos a falar de quase de um milhão de Portugueses que regressavam a Portugal sem nada na bagagem…
Mário Soares soube sempre lidar com os seus críticos, os que o acusavam de enriquecer na política, mesmo toda a gente sabendo que o pai de Soares era dono de um dos colégios Portugueses mais ricos da altura – Colégio Moderno e proveniente de famílias abastadas. Por isso defendeu os presos políticos sem cobrar honorários. Defendeu a família de Humberto Delgado, foi advogado de Álvaro Cunhal sem temer qualquer represália que sabia vir a existir.
Enquanto jovem, poderia muito bem entregar-se aos “prazeres da vida”, ajudando o pai a gerir o lucrativo Colégio Moderno e alinhando, porventura, ao lado do status quo instituído, mas Soares resolveu combater Salazar elevando as suas convicções por um país livre e igual. Esteve ao lado de Norton de Matos e Humberto Delgado, foi preso 13 vezes, torturado pela PIDE, deportado para São Tomé em 1968 sem acusação numa altura em que era imperativo desviar atenções, dado que acabara de rebentar o escândalo Ballet Rose que envolvia ministros de Salazar – esta deportação valeu a Soares uma homenagem por parte da Amnistia Internacional face à sua condição de preso político – sendo posteriormente enviado para o exílio em 1970. Acresce a tudo isto o facto de até ter casado por procuração, de forma a permitir as visitas de Maria Barroso à cadeia.
Há portanto a necessidade de centralizar as suas tomadas de decisão com os acontecimentos da própria História e compreender os momentos. Como Daniel Oliveira (Expresso) afirma, Soares abraçou Cunhal na chegada deste a Portugal e combateu-o a partir da Fonte Luminosa, foi amigo e camarada de Salgado Zenha e lutou contra ele, defendia o Estado Laico mas enaltecia o papel da Igreja Católica, apoiou nacionalizações e a iniciativa privada, esteve do lado e contra Manuel Alegre, defendeu a austeridade em 83 e combateu-a em 2011, colocou Portugal na CEE e criticou o rumo que a União Europeia estava a tomar. Estas tomadas de posição trouxeram inimigos, mas acima de qualquer questão, defendeu a democracia e a liberdade.
Não tenho a intenção de defender Soares, até porque este convivia muito bem com a crítica. Mas acima de tudo não podemos aceitar que alguns queiram reescrever a sua História, depois de morto, diabolizando alguém que lutou, ao lado de muitos outros, pela liberdade de um povo e foi eleito diversas vezes pelo voto popular para representar a nossa Nação nos mais diversos cargos.
Mário Soares não é o pai da democracia Portuguesa, porque esta não tem pai. A democracia foi conquistada através da ação última dos militares, mas acima de tudo pela ação de milhares de anónimos que se insurgiam diariamente contra um poder cego e instituído brutalmente e promotor da miséria, analfabetismo e fome. Soares foi mais um que lutou e teve oportunidade de ter um papel relevante na construção do nosso país. Mas Mário Soares será certamente recordado na História de um país onde todos podem pensar o que quiserem do seu papel na nossa sociedade. Felizmente, o delito de opinião já não existe!
“Lutei pelo direito à indignação.
Muito antes de permitirem a existência de indignados”
Mário Soares
Nelson Oliveira (in: jornal TVS - 12.01.2017)