O grande derrotado da noite eleitoral não foi Maria de Belém, Jerónimo de Sousa, Edgar Silva. Não. A acreditar na maior parte da comunicação social o maior derrotado da noite foi o primeiro-ministro, António Costa. Sim, sim. Nem deve ter dormido ontem à noite.
Para o “Diário de Notícias”, o jornal “i” e o “Jornal de Negócios”, António Costa está entre os grandes derrotados da noite. Para o DN porque “não conseguiu travar a pulverização de candidaturas à esquerda, duas delas com fortes apoios no seu partido”; para o “i” porque “perdeu as regionais na Madeira, as legislativas de outubro e, agora, as presidenciais”; e para o JN porque “a vitória de Marcelo Rebelo de Sousa é o pior de todos os resultados para o líder do PS e atual primeiro-ministro”.
Se os meus ilustres camaradas de profissão o dizem é porque deve ser verdade. Permito-me, contudo, propor que se olhe para o problema de maneira diferente. E para sistematizar, que o façamos em sete pontos.
1) Depois de se confirmar que António Guterres não seria candidato e que António Vitorino também não avançaria, não havia nenhuma personalidade da área socialista que estivesse em condições de bater a notoriedade e a popularidade de Marcelo Rebelo de Sousa. Não gastar armas e energias numa batalha perdida costuma caracterizar os grandes estrategas.
2) Como é óbvio, Costa não dispunha de nenhum poder para impedir a proliferação de candidaturas à esquerda, a não ser que tivesse o ás de trunfo (Guterres). Não o tendo, não só se desinteressou da eleição (sobretudo a partir do momento em que Marcelo Rebelo de Sousa se afirmou como o único candidato do centro-direita), como era inevitável a tal pulverização de candidaturas à esquerda que, lembre-se, é uma constante desde que há eleições presidenciais livres em Portugal. Outra constante é o facto de o vencedor ser sempre encontrado logo à primeira volta – com a exceção muito especial das eleições de 1986.
3) Marcelo passou a campanha a fazer declarações de amor ao Governo PS e a deitar água na fervura em todos os dossiês polémicos, passando sucessivos atestados de responsabilidade ao Governo e afastando qualquer hipótese de, assim que se sentar em Belém, dissolver a Assembleia da República e convocar novas eleições. Além do mais, Marcelo, como mostrou o seu discurso de vitória, pretende ser um Presidente inclusivo, não discutindo uns votos em detrimento de outros e pretendendo sarar as feridas e as clivagens abertas pelos quatro duríssimos anos de austeridade e sustentando mesmo a necessidade do país apostar no crescimento, palavras que seguramente devem ter desagradado mais a Passos Coelho do que ao primeiro-ministro. Por que é que a sua eleição há de ser o pior de todos os resultados possíveis para Costa?
4) Além do mais, Marcelo não era o candidato que Passos Coelho defendia e não lhe ficou a dever nada nesta campanha, pelo que não tem de lhe pagar favores. É um dos presidentes mais livres que, desde 1974, alguma vez esteve em Belém. E quer na campanha eleitoral quer no seu discurso de vitória distanciou-se claramente da política de austeridade seguida por Passos. Um Presidente da República que não aprecia o presidente do maior partido da oposição (e que sabe que este lhe paga na mesma moeda), que não é entusiasta das políticas que ele seguiu e que claramente se orienta pelos princípios sociais-democratas que caracterizaram o PSD até Passos o levar para uma deriva ferozmente neoliberalista, não é seguramente um grande incómodo para António Costa.
5) A estrondosa derrota de Maria de Belém é também uma excelente notícia para o líder do PS e primeiro-ministro. A ex-presidente do partido, vários notáveis que estão contra a atual fórmula de Governo e os seguristas juntaram-se numa candidatura destinada a tentar causar sérios problemas a António Costa, a desgastá-lo e, em última instância, a obrigá-lo a resignar. Saiu-lhes o tiro pela culatra. Maria de Belém começou mal e acabou pior. A sua candidatura nasceu contra o apoio que o secretário-geral do PS tinha dado informalmente a António Sampaio da Nóvoa e não tinha mais nada para a justificar perante os portugueses. Foi por isso perdendo gás e a machadada final foi o caso das subvenções, onde a candidata perdeu definitivamente a sua honra republicana. Com tudo isto, António Costa bem pode continuar a perder eleições, desde que se mantenha como primeiro-ministro, porque durante muito tempo não se ouvirá falar de oposição interna no PS.
6) O excelente resultado de Marisa Matias também não é uma má notícia para Costa. O Bloco de Esquerda tem sido um partido mais responsável e sólido no apoio ao Governo do que o PCP, ao contrário do que se esperava. Este resultado demonstrará a Catarina Martins e aos seus pares que este posicionamento é premiado pelos eleitores, em vez de grandes declarações ditirâmbicas ou atos radicais que acabam por afastar os cidadãos que veem com muita simpatia este “novo” BE – pelo que se pode esperar que os bloquistas continuarão a ser um apoio sólido do Governo nos momentos parlamentares decisivos. Mas há mais. É que apesar do excelente resultado, ele repete, na prática, o que o Bloco obteve nas últimas legislativas. Ou seja, o Bloco não cresceu – e isso é, para já, uma preocupação a menos para Costa.
7) Finalmente, a última boa notícia para Costa da noite eleitoral é a derrota quase humilhante de Edgar Silva, uma aposta do líder comunista, Jerónimo de Sousa. O PCP podia facilmente ter apoiado Sampaio da Nóvoa. Preferiu ir por outro caminho. Jogou e perdeu muito. É claro que há sempre o risco do desespero e de o PCP querer vir a ganhar nas ruas a influência que está a perder nas urnas. Mas quem sair agora do barco que Costa colocou a navegar dificilmente não será penalizado em eleições antecipadas – pelo que o PCP pensará muito maduramente antes de rasgar o acordo que assinou com o PS.
Digamos, portanto, que as notícias de que Costa foi um dos grandes perdedores da noite me parecem manifestamente exageradas. Só o futuro, contudo, dirá quem tem razão. Marcelo é imprevisível mas não é de grandes confrontos e abruptas clivagens. Tanto ele como Costa são duas velhas raposas da política portuguesa, que se conhecem bem, o que lhes permite antecipar com alguma razoabilidade o que cada um vai fazer a seguir.
Uma coisa é certa: a partir de agora, o Governo PS não terá em Belém um presidente ressabiado e pronto a fazer tudo para lhe dificultar a vida. E isso muda quase tudo nas relações entre o Palácio de Belém pintado verdadeiramente de laranja e São Bento engalanado nos tons de rosa originais.
PS – Uma última nota para Sampaio da Nóvoa. Fez uma campanha sempre a crescer, com intervenções políticas cada vez melhores e mais consistentes. Foi o único que tirou Marcelo do sério e o obrigou a explicar-se politicamente, tendo ganho claramente esse debate ao novo Presidente da República. E o discurso de derrota que proferiu, sem ressabiamentos e reconhecendo Marcelo como presidente de todos os portugueses, fez dele claramente o vencido mais vencedor da noite.
(Nicolau Santos, in Expresso Diário, 25/01/2016)